quarta-feira, julho 13, 2005

"Bits" e "Bytes" nos idos de 70


Já que o Fernando Redondo resolveu desenterrar histórias de computadores, lembrei-me de pôr no “blog” este texto, escrito já há algum tempo. São recordações da minha primeira experiência como informática. Limitei-me a alterar os nomes das pessoas.

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O Sr. Santos aperta a mão a cada um dos colegas, como todos fazem quando chegam de manhã.
O Sr. Silva vira a página do calendário e enfia as mangas de alpaca pretas, com elástico em cima e nos punhos, para poupar o casaco cinzento que comprou no Natal.
O Sr. Martins tira o meio lápis que já tinha guardado atrás da orelha e pega no escantilhão para continuar a desenhar o complexo fluxograma que colocará mais tarde na corticite a que encosta a cadeira.
A Célia começa a perfurar um programa novo em cartões azuis.
A Leonor queixa-se das insónias da noite anterior.
As duas doutoras verificam cuidadosamente os maços de cartões que a Célia pôs nas suas secretárias e voltam a colocar elásticos em cada um. Nessa noite, seguirão de avião para a Bélgica os seus primeiros programas.


É assim que se prepara a chegada de um novo computador, numa cave de Almirante Reis, numa manhã da Primavera de 1970, numa empresa dita de “Service Bureau” - e que, se tivesse existido trinta anos mais tarde, estaria a fazer “Outsourcing”.
O chamado material clássico e os pesados computadores a cartões, todos cinzentos, continuam a executar as aplicações de salários e de contabilidade dos clientes. Mas não chegam para satisfazer as exigências e a visão que o Dr. José Azevedo tem para a sua empresa, no início de uma nova década.
Por isso vem aí “O” computador que ainda precisará de cartões, mas que terá também discos e bandas magnéticas e 30K “bytes” de memória! O seu espaço já está reservado e devidamente envidraçado, o chão falso colocado e a instalação de ar condicionado não tardará. Por isso também admitiu as duas doutoras.

O Sr. Silva combina mais uma almoçarada com frango de churrasco e tenta convencer as doutoras a participarem. (Só é costume irem homens: as perfuradoras levam comida de casa e as doutoras fazem companhia uma à outra num restaurante perto da Praça do Chile.) Elas dizem que talvez para a semana.
O Sr. Martins explica às doutoras por que razão é preciso utilizar tantas instruções de condensação nos programas: há que poupar meios “bytes” sempre que possível, todo o desperdício pode ser fatal, mesmo com o grande sistema que aí vem.


O Sr.Martins é o chefe da Programação e Análise. Só tem a 4ª classe, mas todos acham que ele é um génio. Nem percebem para que servem doutores, o exemplo do Sr. Martins mostra bem que não são precisos canudos para lidar com computadores.

A Drª Júlia telefona para o fornecedor do novo computador para que mande buscar os cartões com os programas. Estes serão compilados em Bruxelas – tem que ser assim já que o dito computador será o primeiro da sua espécie, o maior, o mais rápido a ser instalado em Portugal.
O Sr. Santos pergunta a todos se acreditam que o arranque do novo sistema se fará em Maio como previsto. Ninguém responde porque toda a gente duvida. Ele volta para a sua Separadora.
A Leonor diz à Célia (que é a responsável pela Perfuração, ou seja por ela própria e pela Leonor) que o papel higiénico de reserva não vai chegar até ao fim do mês se não houver um esforço colectivo de poupança.


É 6a feira, 1h da tarde. Os homens atravessam a avenida e vão comer o tal frango de churrasco numa tasca com azulejos brancos na parede. Já está calor desde manhã, mas eles não sabiam porque não há janelas na cave de Almirante Reis.
Os eléctricos passam devagar, meios vazios. Os portugueses continuam tristonhos, mas há algo de diferente nas ruas. As raparigas encurtaram muito as saias, há mesmo algumas de “hot pants”.

O Sr. Martins e o Sr. Santos retomam a codificação dos seus programas.
As duas doutoras não têm nada que fazer porque as listagens de Bruxelas só chegarão lá para 3ª feira. O tempo custa a passar.
A Célia recorda que há um lanche às 5h no átrio da casa de banho das senhoras porque a Leonor faz anos.
A Drª Júlia telefona ao namorado e combinam ir ao cinema. A Drª Rita pergunta-lhe o que vai ver. Diz que ainda não sabe: parece-lhe demasiado esotérico explicar que será “A Paixão de Joana d’ Arc”, numa retrospectiva de Carl Dreyer no Palácio Foz...
A Leonor diz que está desejando que o dia acabe para ir buscar a filha que só vê aos fins de semana: de 2a a 6a fica em casa dos avós na Malveira.
Há menos barulho porque ninguém trabalha com a Separadora – para ela já é sábado...


Acabou o fim de semana, passou-se mais um mês.
É noite e Marcelo Caetano entra pela casa dos portugueses com mais uma “Conversa em Família”. Em Alfama, preparam-se as ruas para a noite de Santo António.

O computador chegou entretanto. Foram abertas dezenas de caixotes, os técnicos do fornecedor esticaram muitos metros de cabos. Já piscam luzinhas desde a véspera.
É tarde mas ninguém se vai embora. Finalmente, “o sistema “arranca”! Vem o Dr. Azevedo, abre-se uma garrafa de champanhe. As perfuradores põem batom, o Sr. Silva tira as mangas de alpaca.
O computador só compila e só executa um programa de cada vez (modernices de multiprocessamentos só virão mais tarde), mas tem 30 K, é grande, é bonito e fica muito bem na sala envidraçada.

Afinal, Portugal não é tão atrasado como dizem!

1 comentário:

F. Penim Redondo disse...

Cá para mim estás em vias de iniciar um novo tipo de ficção...

O que mais me divertiu foi a forma como ressucitaste o choque entre a "modernidade" e uma sociedade e tipos sociais que estão em vias de extinção.