domingo, fevereiro 25, 2018

Escrito no avião



Escrito no avião
de regresso à Guiné 50 anos depois

O avião levantou ao fim da tarde, com frio e núvens magníficas em Lisboa.
A maioria dos passageiros aparenta ser guineense e transporta incontáveis volumes como quem regressa a casa atulhado de presentes.
Há 50 anos tive alguns dias no mar para me adaptar ao calor de Bissau; agora vou ser despejado ao fim de quatro horas numa temperatura que deve ser o triplo da que sofria no ponto de partida.
Não sei bem como vou reagir a este reencontro.
As imagens que me chegam da internet desmentem a memória, que fixou uma cidade quase aldeia, com ritmos suaves e sem multidões.
Aos "ajuntamentos" festivos chamavam-lhes "ronco" e os batuques voavam da tabanca até aos bairros de vivendas dos brancos. Algumas vezes saí de casa, com a câmara na mão, por não resistir ao chamamento.
Pergunto-me se tal coisa ainda hoje acontece.
Eu morava numa transversal da avenida principal, numa casinha modesta para os padrões de Lisboa. Sem televisão, ou internet, os dias corriam naturais e coleccionávamos bicharada; como se não bastassem os que andavam à solta.
Tivemos cães, gatos, periquitos, camaleões, tartarugas e sei lá que mais.
O camaleão até serviu para decorar uma improvisada árvore de Natal. Depois o gato Rom-Rom trespassou-o com os seus temíveis caninos.
O Rom-Rom também caçava grandes lagartos, que trazia para debaixo da nossa cama, e até morcegos.
O pior eram os pombos que o vizinho tanto estimava. O vizinho já andava de olho no Rom-Rom e dizia-se que treinava com uma pressão de ar.
O Rom-Rom, uma autêntica fera, foi o nosso primeiro gato de uma longa série. E o mais dócil de todos apesar da sua costela selvagem. Trouxemo-lo para Lisboa onde nunca se adaptou e acabou por desaparecer.
Pergunto-me se ainda haverá gatos daqueles, e tantas outras coisas tão autênticas que nos encantavam, a nós que íamos de um país subdesenvolvido e pobre.
Será que o plástico invadiu a Guiné como aconteceu com as nossas feiras da província?
Vou de espírito aberto, à procura não sei bem de quê. Talvez daquela juventude que não tinha a consciência de o ser, que se limitava a usufruir da sua robustez intacta, do desplante da sua saúde sem mácula.
Ou então vou à procura daquele espírito ainda tão próximo da poesia e da utopia, que nenhum desgosto ou núvem conseguia perturbar.
Preciso de voltar a pisar aquela terra onde passei, psicológicamente incólume, os perigos da guerra e as tortuosidades do colonialismo.
A Guiné é uma terra avermelhada onde rareiam as pedras mas onde os bichos proliferam. Quantidades inimagináveis de caranguejos, mosquitos, ostras, sapos e escaravelhos.
Os varredores lançavam-nos contra os muros, onde faziam pilhas que davam pelo joelho. Louva-a-Deus e baratas voadoras atingiam-nos por vezes mal abríamos a porta da rua.
Com os sapos cheguei a fazer corridas no tampo da mesa de oficial de serviço, em longas noites de modorra sem zaragatas.
Ao dealbar, no silêncio da parada os jagodis, abutres locais de nariz adunco e andar pomposo, procuravam algo que se comesse e disputavam entre eles qualquer achado.
Nem de propósito estalou um bru-á-á no avião quando os passageiros descobriram que teriam direito, como jantar, apenas a uma sandes.

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